terça-feira, 7 de junho de 2011

Aceitação. Um tesouro a ser descoberto em nossos dias

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Eleger um tema e dele retirar todos os seus sulcos é um trabalho árduo e minucioso. Muitas vezes pelo amor, pela antipatia, na defesa de ideologias, ou mesmo pela vontade quase perene da desconstrução do mesmo, os historiadores se posicionam e revelam a sua sempre negada parcialidade. Para Lucien Febvre[1], o historiador deve procurar ser imparcial, mesmo que isto lhe pareça impossível.
A história da África até o século XIX foi escrita por historiadores ligados à historiografia européia, ou seja, uma historiografia de “vencedores”, de imperialistas. A colonização foi o primeiro modelo histórico a ajudar a inserir na mentalidade ocidental, o conceito de “incapacidade histórica da África”. Esta incapacidade estava no fato de que, para os europeus, a inexistência de uma estrutura europeizada de governo legou ao continente africano a falta de história. No mundo europeu, consumido pelo cientificismo e pelo racionalismo, somente as ações governamentais pautadas dentro de padrões jurídicos e filosóficos podiam legitimar a história. Estas construções historiográficas ajudaram no total desconhecimento do tecido social africano assim como de suas riquíssimas culturas e tradições.
Dentro desta visão de uma “África sem história” nasceram inúmeras justificativas para séculos de exploração e extermínio humano-cultural. Este discurso eliminou a possibilidade de existir qualquer espécie de tentativa de igualdade entre “dominado” e “dominador”. Foi através da destruição da subjetividade e da humanidade do “outro” que se alicerçou o edifício neo-colonizador.
A anulação do africano enquanto sujeito social distanciou as gerações atuais de seu passado histórico. Quando os europeus começaram a “descolonizar” o continente africano deixaram-no à própria sorte, desconfigurando-o territorialmente, aniquilando-o culturalmente e deixando-o extremamente dependente da estrutura e da logística européia. O termo “descolonizar”, muito utilizado pelos historiadores da historiografia tradicional, só fez construir uma caricatura de África incapaz, impotente, desprovida de qualquer referencial de luta e resistência; construiu uma imagem continental mística e nada politizada, impossibilitando o discurso de independência de suas nações. É o colonizador que dá a emancipação nacional e não os africanos. 
A saída dos europeus do continente africano ainda gerou uma grave mutilação nas raízes históricas do povo africano: o esvaziamento da memória. A nova geração de africanos cresceu e ainda cresce sem conseguir chamar para si o passado de resistência de suas nações. A modernidade impede os mesmos de terem um contato substancial com seu passado histórico, com a memória de seus ancestrais. No conceito de “modernidade líquida” [2] se afrouxaram todos os laços que os prendiam à sua ancestralidade.
Querer aprofundar-se nos estudos e nas problemáticas africanas é ter um contato intenso com as construções historiográficas pautadas na anulação do sujeito africano enquanto fazedor de história. Lucien Febvre disse em uma de suas obras, que “compreender é complicar, é enriquecermo-nos em profundidade”. Hoje, mais que em outras épocas, somos convidados a mergulhar em estudos que procurem enriquecer as análises desta temática; somos instigados a contemplar a África entendendo que o legado de sua cultura é a própria memória de seus ancestrais.
Alberto da Costa e Silva, diplomata e historiador brasileiro, que trabalhou como embaixador nas repúblicas africanas da Nigéria e do Benim por muitos anos, em seu livro, “A enxada e a lança”, resume em uma só frase o que a desastrosa presença européia causou ao continente africano: “sem seus filhos o continente está nu”. Que nossos olhares sobre a África considerem a existência de seus povos, de suas histórias, de suas imemoriais tradições e principalmente, que vivamos o que diz o sábio provérbio nigeriano do povo Kanuri: “não há amor quando não se aceita os outros”.

Texto: Alisson Ferreira


[1] Historiador francês
[2] Conceito criado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman