segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A historiografia e o esvaziamento da memória

Eleger um tema e dele retirar todos os seus sulcos é um trabalho árduo e minucioso. Não raras vezes; quer por amor, antipatia, defesa de ideologias, ou mesmo pela vontade, quase perene, da desconstrução da proposta a ser apresentada, os historiadores se posicionam e revelam a sua quase sempre negada parcialidade. Para Lucien Febvre (1)  , o historiador deve procurar ser imparcial, mesmo que isto lhe pareça impossível.

A história da África até o século XIX foi escrita por historiadores ligados à historiografia européia, ou seja, uma historiografia de “vencedores”, de neo-colonizadores. A colonização foi o primeiro modelo histórico a incutir, na mentalidade ocidental, o conceito de “incapacidade histórica da África”.

Esta incapacidade estava no fato de que, para os europeus, a inexistência de uma estrutura europeizada de governo teria legado ao continente africano a falta de história. No mundo europeu, consumido pelo cientificismo e pelo racionalismo, somente as ações governamentais pautadas dentro de padrões jurídicos e filosóficos podiam legitimar a história. Estas construções historiográficas levaram ao total desconhecimento do tecido social africano, assim como de suas riquíssimas culturas e tradições.

Dentro desta visão, de uma “África sem história”, nasceram inúmeras justificativas para séculos de exploração e extermínio humano-cultural. O discurso construído dentro dela eliminou a possibilidade da existência de qualquer espécie de tentativa de igualdade entre “dominado” e “dominador”. Foi através da destruição da subjetividade e da humanidade do “outro” que se alicerçou o edifício neo-colonizador.

A anulação do africano enquanto sujeito social distanciou as gerações atuais de seu passado histórico. Quando os europeus começaram a “descolonizar” o continente, deixaram-no à própria sorte; desconfigurando-o territorialmente; aniquilando-o culturalmente e deixando-o extremamente dependente da estrutura e da logística européia. O termo “descolonizar”, muito utilizado pelos historiadores da historiografia tradicional, só fez construir uma caricatura de África incapaz, impotente e desprovida de qualquer referencial de luta e resistência; e ainda, uma imagem continental mística e nada politizada, que impossibilitou o discurso de independência de suas nações, decorrendo, sob este ponto de vista, uma emancipação nacional partida do colonizador e não dos africanos.

A saída dos europeus do continente africano também gerou outra grave mutilação nas raízes históricas do povo africano: o esvaziamento da memória. A nova geração de africanos cresceu; mas permanece sem conseguir chamar para si o passado de resistência de suas nações. A modernidade impede os mesmos de terem um contato substancial com seu passado histórico, com a memória de seus ancestrais. No conceito de “modernidade líquida”(2) afrouxaram-se todos os laços que os prendiam à sua ancestralidade.

Querer aprofundar-se nos estudos e nas problemáticas africanas é ter um contato intenso com as construções historiográficas pautadas na anulação do sujeito africano enquanto fazedor de história. Lucien Febvre disse, em uma de suas obras, que “compreender é complicar, é enriquecermo-nos em profundidade”. Hoje, mais que em outras épocas, somos convidados a mergulhar em estudos que procurem enriquecer as análises desta temática; somos instigados a contemplar a África entendendo que o legado de sua cultura é a própria memória de seus ancestrais.

Alberto da Costa e Silva, diplomata e historiador brasileiro, que trabalhou como embaixador nas repúblicas africanas da Nigéria e do Benim por muitos anos, em seu livro, “A enxada e a lança”, resume em uma só frase o que a desastrosa presença européia causou ao continente africano: “sem seus filhos o continente está nu”. Que nossos olhares sobre a África considerem a existência de seus povos, de suas histórias, de suas imemoriais tradições e principalmente, que vivamos o que diz o sábio provérbio nigeriano do povo Kanuri: “não há amor quando não se aceita os outros”.

Texto: Alisson Ferreira
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(1) Historiador Francês
(2) Conceito criado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman

ONU denuncia aumento do racismo na França

O Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU colocou a França no banco dos réus, após um exame da sua política sobre as minorias, denunciando um aumento significativo do racismo.

Em Julho, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, ordenou a expulsão dos imigrantes ilegais ciganos e o desmantelamento dos seus acampamentos. Os 18 membros do comitê saudaram o anúncio inesperado feito por uma delegação francesa sobre a preparação de um plano nacional de luta contra o racismo, após a apresentação de um relatório de 90 páginas sobre as medidas tomadas pelas autoridades para combater as discriminações.

Contudo, os argumentos franceses estão longe de convencer os peritos do comitê. Para Ewomsan Kokou, membro togolês do comitê, a França, apesar de numerosos instrumentos legais, está confrontada com um "recrudescimento notável do racismo e da xenofobia". Para o relator norte-americano Pierre-Richard Prosper, a razão é só uma: falta de "verdadeira vontade política".

O Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial criticou, esta quarta-feira, o tratamento que é dado aos ciganos, o debate sobre a identidade nacional, o não reconhecimento do direito das minorias na lei e o endurecimento do discurso político. Os peritos aguardam as respostas do governo francês antes de dirigirem as suas recomendações.

Entretanto, segundo adianta o jornal I, a polícia francesa levantou 40 acampamentos ciganos ilegais em duas semanas, anunciou o ministro do Interior de Lyon, Brice Hortefeux.

Está previsto o desmantelamento de 300 acampamentos ilegais em três meses, segundo o ministério, serão organizados vôos para repatriar 700 imigrantes sem documentos para a Romênia e Bulgária.

Em Julho, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, ordenou a expulsão dos imigrantes ilegais ciganos e o desmantelamento dos seus acampamentos. A França está, aliás, a pressionar a Romênia para integrar melhor os ciganos de modo a que estes não imigrem.

Sarkozy anunciou esta medida entre outras incluídas num pacote legislativo para combater a criminalidade, onde consta também uma proposta que prevê retirar a nacionalidade francesa aos estrangeiros que atentarem contra as autoridades públicas.

Para além do próprio pacote anti-imigração, que levou inúmeras organizações francesas e internacionais a condenar o seu conteúdo racista e xenófobo, o seu anúncio foi feito no mesmo dia em que a CNN divulgou um vídeo onde se vêem cerca de 60 imigrantes e seus bebês, a maioria procedente da Costa do Marfim, a serem arrastadas e agredidas violentamente pela polícia francesa num subúrbio de Paris.

Fonte: esquerda.net

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A superação do racismo

Apesar de ter conquistado espaço, a Pastoral Afro no Brasil enfrenta resistência mesmo naquelas questões que estão de acordo com os documentos e com o magistério da Igreja. Essa é a opinião de dom Gilio Felicio, o primeiro negro a chegar ao episcopado na arquidiocese de Salvador, na Bahia, em 1998, onde criou a Pastoral Afro.

Poucos meses depois foi transferido para a cidade de Cruz das Almas, a 160 quilômetros da capital baiana. Gaúcho de Lageado, diocese de Santa Cruz do Sul, dom Gilio, em 2002 passou a ser o bispo de Bagé, RS. Desde a década de 80 acompanha e participa do Movimento Negro Católico junto aos Agentes Pastorais Negros. Em 1989 começou a participar do Instituto MARIAMA, uma articulação nacional de padres, bispos e diáconos negros, do qual foi presidente por dois mandatos. Foi até 2007 o bispo coordenador da Pastoral Afro-Brasileira, na CNBB. Participando do XVI Congresso Eucarístico Nacional, realizado logo após o término da 48ª Asssembleia Geral da CNBB, em Brasília, dom Gilio falou à revista Missões.

Qual a sua avaliação sobre a última Assembleia Geral dos Bispos do Brasil?

Foi uma grande benção para nós, bispos, que pudemos nos encontrar e fazer um rica convivência em Brasília pensando as coisas que são realizadas neste coração do Brasil, que definem a vida e a missão do país para o dinamismo interno e as relações internacionais. Evidentemente, a Igreja tem uma mensagem muito rica a apresentar para que de fato o país consiga formar uma comunidade, uma pátria amada, humanamente equilibrada, espiritualmente forte, vocacionalmente fecunda e com um desenvolvimento integral para todos. Analisamos e procuramos apresentar nosso posicionamento diante desta proposta em relação à defesa dos direitos humanos, reafirmando a posição da Igreja. Ao mesmo tempo aprovamos encaminhamentos a respeito da consideração e atitude dos brasileiros diante do uso dos recursos que a natureza oferece. Lembramos a necessidade urgente da reforma agrária, da política agrícola. Encaminhamos propostas para que a CNBB tenha na sua literatura elementos que farão as comunidades refletirem, rezarem e ajudarem os governantes.

A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja e as CEBs também foram temas refletidos?

A escolha de um grande tema prioritário é para fazer com que as comunidades sejam conhecidas, estimadas e fortalecidas na missão importantíssima que têm, de ser centro de evangelização e ao mesmo tempo centros de fortalecimento da consciência cidadã e também uma fonte de garantia de uma construção a partir dessas pequenas células de uma sociedade viva, justa e fraterna. Estas são comunidades que têm também a vocação de favorecer a partir da meditação da Palavra de Deus a oração e o compromisso com os desafios, fortalecer a cultura vocacional. Isto é, na medida em que as dioceses forem favorecendo as pequenas comunidade, as CEBs e também as novas comunidades, nós teremos um serviço eficaz para o despertar das várias vocações que favoreçam uma Igreja Povo de Deus toda ministerial.

Dizem que no Brasil não há racismo. Por que então há tão poucos padres e bispos negros brasileiros?

Esta é uma questão que de certa forma foi abordada e a Assembleia aconteceu enquanto o Brasil, de certa forma comemorou, mas também procurou mostrar o significado do 13 de maio, que oficialmente é proclamado como o Dia da Abolição da Escravatura. A CNBB elaborou um documento lembrando que na memória de mais um aniversário da Abolição deve-se fazer uma reflexão muito grande. Em primeiro lugar, a Igreja precisa continuar essa caminhada bonita de libertação dos condicionamentos que foram criados no tempo da escravidão e, portanto, dos mecanismos de exclusão dos valores africanos e afro-descendentes. Ao mesmo tempo, a Igreja, a partir do Documento de Aparecida, deve lutar para conhecer, assumir, estimar e promover os valores afro-descendentes. E, claro, colocar a sua missão cristã a serviço dos negros e negras que estão necessitando de uma força, de auto-estima, do dom de Deus presente na negritude, necessitando de políticas afirmativas, enfim, de serem atendidos nas suas carências, em seus gritos por socorro, mas ao mesmo tempo, no sentido de poderem participar e oferecer, como dizia o papa João Paulo II, em Santo Domingo, os seus valores culturais para enriquecer a Igreja e a sociedade.

Como está organizada a Pastoral Afro no Brasil?

No Brasil nós temos um Secretariado de Pastoral Afro, que marca presença na sede da CNBB junto ao Conselho de Assessoria da Ação Evangelizadora da Igreja. Este Secretariado acompanha e assessora a Pastoral Afro que está presente em quase todas as dioceses do país. Evidentemente, essa Pastoral está ligada ao Secretariado Latino-Americano e Caribenho de Pastoral Afro – SEPAFRO, do qual sou o responsável. Esse Secretariado seria a Seção Afro-Americana e faz parte do Departamento de Educação e Cultura do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM.

A Pastoral Afro encontra certa resistência em algumas dioceses. Quais seriam as maiores dificuldades?

Várias dioceses ainda não iniciaram essa pastoral exatamente em virtude desses condicionamentos da época da escravidão e da situação que pesa ainda na sociedade e na Igreja, do racismo, da discriminação racial e assim por diante. Percebemos na sociedade brasileira boa vontade com vários Centros e Entidades até em nível ministerial que estão trabalhando em favor da população negra. Mas há um longo caminho de superação desse condicionamento racista. Também, uma das dificuldades que encontramos na Igreja é a questão do diálogo ecumênico e inter-religioso. Nesse diálogo, nós não podemos fugir dos interlocutores que pertencem às religiões de matrizes africanas. Quando se estabelecem os encaminhamentos, quando esses diálogos começam, há uma resistência bastante grande. Um sonho que a Igreja tem é a inculturação da sua ação evangelizadora. Esse caminho também é bastante espinhoso, com muitas incompreensões. Evidentemente que a caminhada que se faz não é perfeita, mas há uma resistência mesmo naqueles passos que são dados e que estão absolutamente de acordo com os documentos e com o magistério da Igreja.

Se a Eucaristia é mistério tão poderoso, para suscitar a Missão, o que enfraquece o dinamismo missionário de tantos cristãos?

O pano de fundo é exatamente o que diz o Documento de Aparecida quando fala da profundidade e da verdade do Encontro com o mistério de Jesus Cristo. Na medida em que isso acontece verdadeiramente, a Ação Evangelizadora se torna eficaz. Vemos isso em outras confissões religiosas: mesmo não entendendo o mistério, as pessoas simples, entusiasmadas dão um recado que toca o coração da sociedade. Na medida em que os diversos ministérios dentro da Igreja se entusiasmarem e se deixarem dinamizar pela força do Espírito Santo na vivência da vontade de Deus, concretizando a Boa Nova de Jesus Cristo, tranquilamente acontece muita coisa bonita. Eu tenho várias experiências em periferias, nas quais muitas vezes o padre não vai, mas, alguma pessoa simples se entusiasma e vai deixando que esta luz toque o coração da vizinhança e de repente surge uma Comunidade de Base ou um movimento eclesial que passa a estabelecer uma novidade, às vezes transformando todo um edifício numa comunidade. Nem sempre o ministério ordenado dá conta da evangelização que deve acontecer. Os leigos têm um protagonismo que nós não podemos desprezar, embora, na nossa tradição católica é importantíssimo que tenhamos uma abundância do ministério ordenado.

Fonte: Site da Conferêncial Nacional dos Bispos do Brasil (Pastoral Afro) - CNBB

Romaria da Terra no Paraná refletiu a situação dos Quilombolas

No último dia 15, o município de Adrianópolis, pertencente à diocese de Paranaguá, acolheu a 25ª Romaria da Terra. No ano em que comemora o jubileu de romarias busca-se o aprofundamento da comunhão com os povos quilombolas.

O Município de Adrianópolis, está situado no Vale do Ribeira, divisa com o estado de São Paulo, pertence à Região Metropolitana de Curitiba, distante 130 Km da capital. Com uma população estimada em 6.856 habitantes, onde cerca de 75% se encontram na zona rural.

No município de Adrianópolis existem 13 comunidades quilombolas, sendo 8 reconhecidas e nenhuma ainda titulada. Neste ano a Romaria refletiu a realidade dos povos quilombolas do estado do Paraná inspirada pelo lema: “Quilombo: resistência de um povo território de vida”.

Segundo os últimos levantamentos, no Paraná existem cerca de 86 comunidades quilombolas, sendo 36 as certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP).

O encontro dos romeiros paranaenses e de outros estados foi um momento rico de oração e reflexão a partir da experiência dos povos quilombolas. Foi também a oportunidade da Igreja reafirmar o seu compromisso solidário com esta população que luta para ter os seus direitos reconhecidos.

Fonte: Site da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB

A África quer contar sua história

“Também o leão deverá ter quem conte a
sua história, não só o caçador”
(Chimua Achebe, escritor Nigeriano)

O continente africano é depositário de culturas e histórias que se perdem em tempos imemoriais. Com uma relevância ímpar,o mundo deve olhar para a África, pois nela está o palco das primeiras relações humanas, o berço de sociedades ainda não estudadas, enfim, a África é bem mais que suas costas oceânicas.

Para nós, brasileiros, a relação com o continente africano gera um conceito quase placentário. Uma ligação de aproximadamente cinco séculos gestou inúmeros valores simbólicos e materiais que não se desfizeram por uma aproximação que não encontra distâncias. O historiador brasileiro, Alberto da Costa e Silva romantizou as relações entre Brasil e África em seu livro “Um rio chamado Atlântico”, para ele, os mesmos estão ligados não por um oceano, mas sim, por um rio, pois o rio apresenta margens visíveis, o oceano não.

Neste sentido, apontando aspectos desconhecidos ou mesmo mal trabalhados pela historiografia tradicional, a história da África precisa ser contada de forma a edificar o que ela realmente é. Como sujeito, e não objeto de sua história, a África; não mais dobrada sobre si mesma, deve ser vista em sua totalidade, destacando seus povos, culturas e particularidades dentro dos fluxos e refluxos que se desenrolaram bem antes da chegada dos colonizadores.

Contar a história da África é reiniciar uma caminhada sobre os percursos tão macerados e naturalizados por historiadores e pela mídia; é apagar o grande número de designações errôneas, comuns em nossos livros e jornais, tais como: escravidão, tráfico e colonização. A África possui infinitas singularidades e particularidades dentro de seu imenso território, tem historicidade própria e não se enquadra, definitivamente, nos conceitos pejorativos ocidentalizados.

O Brasil tem avançado nos estudos da história da África. Hoje já se consegue desconstruir falsas análises acerca da relação entre o continente africano e o cotidiano brasileiro. Podemos, assim, elogiar o esforço de muitas pessoas que estão na luta pela disseminação dos estudos africanos em terras tupiniquins, abrindo portas para que a África não seja tão naturalizada e caricaturada por meio de análises pré-determinadas.

Hoje nas escolas crianças e jovens poderão conhecer que a África é mais que a propaganda negativa da mídia e é bem maior que os insultos, embargos econômicos, guerras étnicas, doenças, calamidades e que o negro não está no mundo na forma gasosa, o negro possui suas formas sólidas, evidentes e constituídas e as vem revelando em anos de luta.

A história africana é um pouco da história de cada um de nós, mesmos os não negros, ela não está em nenhuma origem nacional e nem nas análises biológicas, ela esta na origem, na gênese de nossa compreensão de mundo e povoa nossas cabeças e ecoa em nossas vozes como um poema: “E apesar de tudo, ainda sou a mesma! Livre e esguia, filha eterna de quanta rebeldia me sagrou. Mãe-África!” . (Benguela,1953: Poemas,1966)

Texto: Alisson Ferreira