* Frei Beto
Sou
filho de Ogum e Oxalá, devoto de Iemanjá, a quem elevo as oferendas de todas as
dores e cores, lágrimas e sabores, o choro inconsolável das senzalas, a carne
lanhada de cordas, os pulsos e os tornozelos a ferros, a solidão da raça, o
ventre rasgado e engravidado pela feroz pulsão dos senhores da Casa Grande.
Restam-me,
na cuia de madeira, as sobras do suíno descarnado e, enquanto a mesa colonial
saboreia o lombo, rasgo peles e orelhas, refogo em banha o feijão, fatio em
paio as carnes, frito lingüiças e torresmos, apimento e condimento, e me
empanturro. No alambique, colho a seiva ardente da cana, e me transporto aos
ancestrais, às savanas e florestas, ao tempo de imensurável liberdade.
Nas
noites de Casa Grande vazia e capatazes bêbados, enfeito o meu corpo de
tinturas e, espelhado no reflexo da Lua, adorno braços e pernas, cubro-me de
colares e braçadeiras e, ao som inebriante do batuque, danço, danço, danço,
exorcizando tristezas, exconjurando maus espíritos, imprimindo ao movimento de
todos os meus membros o impulso irrefreável do vôo do espírito.
Sou
escravo e, no entanto, senhor de mim mesmo, pois não há ferrolho que me tranque
a consciência nem moralismo que me faça encarar o corpo com os olhos da
vergonha. Faço do sexo festa, do carinho, liturgia, do amor, bonança,
multiplicando a raça na esperança de quem fertiliza sementes. Dou ao senhor
novos braços que haverão de derrubá-lo de seu trono.
Comungo
a exuberância da natureza, as copas das árvores são meus templos, do fogão de
lenha trago as ofertas, em meu ser trafegam, céleres, cavalos alados, e sigo o
mapa traçado pelos búzios, que me ensinam que não há dor que sempre dura, mas o
verdadeiro amor perdura. Tão povoado é o céu de minhas crenças que não rejeito
nem mesmo a santeria do clero. Antes, reverencio o cavalo de são Jorge,
transfiro aos altares a devoção aos meus orixás, lanço ao rio a Virgem negra na
fé de que, entre tantas brancas, trazidas no andor do senhor de escravos,
chegará o tempo em que a minha será Aparecida e, a seus pés, também os joelhos
dos brancos haverão de se dobrar.
Sou
liberto e, no fundo das matas, recrio um espaço de liberdade, defendendo com
espírito guerreiro o meu reduto de paz. No quilombo, volto à África, resgato a
força mistérica do meu idioma, celebro reisados e congadas, o canto livre
ecoando no coro da passarada, as águas da cachoeira expurgando-me de todo
temor, as árvores em sentinela cobertas de mil olhos vigilantes.
Cidadão
brasileiro, ainda luto por alforria, empenhado em abolir preconceitos e
discriminações, grilhões forjados na inconsciência e inconsistência dos que
insistem em fazer da diferença divergência e ignoram que Deus é também negro.
* Frei
Betto é escritor, autor de "Batismo de Sangue" (Rocco), entre outros
livros.
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