terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Quando a neutralidade é o problema

Imgem:www.abaixoracismo.blogspot.com
Vejo que a neutralidade científica já causou danos cruéis à historiografia brasileira; e quando escrevo sobre o tema “escravidão”, busco empreender, de todas as maneiras, o compromisso do historiador com a imparcialidade e cuido para não ser anacrônico nem descontextualizado. Quando a abordagem historiográfica se ampara perenemente no distanciamento do fato, corre-se o grave risco de tratarmos nossos objetos de estudo de forma fria. Em muitos casos, o historiador desconsidera a transcendência do tema e o trata de forma desvinculada, sem qualquer resquício ou aspecto que o ligue ao presente. Esse erro criou análises carregadas de um romantismo “novelesco” quando se refere à escravidão.
A escravidão, em todas as suas formas foi sempre cruel, nefasta e sem nenhum sentimento. Para compreendermos isso é preciso envolver-se com o estudo, viver o personagem histórico, ou seja, tornar-se primeiramente negro e consequentemente, escravo.
Volto meu olhar para a sociedade brasileira atual e fico a perguntar em como estamos mediando nossas relações sociais? Herdeiras do passado escravista, elas estão expressas nas distinções que promovemos e mergulhadas nas relações de poder criadas pelas elites hierárquicas que governaram e ainda governam certas regiões do Brasil.
As marcas da escravidão institucionalizada, exercida por séculos no Brasil, podem ser claramente percebidas quando nos deparamos com comparações extremamente segregadoras que classificam o tecido social brasileiro dentro de padrões de habilidades, onde os trabalhos manuais estão sempre ligados às classes mais baixas e de pela escura e os trabalhos intelectuais, que são em esmagadora maioria, realizados por uma classe social mais alta e de pele clara.
O problema do distanciamento das análises sociais, dentro da juvenil história republicana brasileira, quase sempre obedeceu a um direcionamento político e específico de criar uma história do “Brasil ideal”. Para esse fim, cada sujeito social deveria ocupar mais, ou menos espaço dentro dela.
Hoje, depois de tantos trabalhos voltados para contar e recontar a história de nossa nação, ainda há quem diga que “lugar de negro é na favela”, ou que serviço ruim é “coisa de preto”. Enquanto não sairmos de nossa neutralidade ao tema, estaremos impedindo que a memória exerça sua função nobre de “iluminar lembranças”; estaremos negando à mesma o dever de desvelar as “poeiras indesejáveis” escondidas dentro de “problemas” que a nossa historiografia tradicional sempre impediu que fossem evidenciados e consequentemente, não resolvidos.
A falta do entendimento de que ainda vivemos as máculas da escravidão faz a sociedade brasileira cometer um dos piores crimes contra a sua história: o esvaziamento da memória. Um povo que se distancia do seu passado promove, muito facilmente, a desqualificação do “outro”; a morte do semelhante e o empreendimento da supremacia de uma classe sobre a outra.

Texto: Alisson Ferreira

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Primeiro aluno de Medicina a entrar por cotas na Ufba recebe diploma

Em uma casa azul na Ladeira Manoel Faustino – mesmo nome de um dos líderes negros da Revolta dos Alfaiates, que em 2011 se tornou Herói da Pátria – Ícaro Luis Vidal, 24 anos, se apronta para o grande dia de sua vida. À noite, o primeiro estudante a ingressar pelo sistema de cotas no curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba) se forma.

As trancinhas que a cabeleireira faz em seu black power têm dois motivos: um é poder vestir o capelo de formatura (chapéu usado na solenidade). O outro é a pressão de sua mãe, Raimunda Vidal dos Santos, 47, que acha que assim o filho fica mais bonito para a festa, realizada ontem à noite, no Centro de Convenções.

Ícaro começou o curso em 2005, quando a Ufba implantou o sistema de cotas. Hoje, a institui-ção reserva 2% das vagas para índio-descendentes e 43% para alunos que tenham todo o ensino médio em escolas públicas. Desses, 85% são para estudantes que se declararam pardos ou pretos.

Ao fim do 3º ano no Colégio da Polícia Militar, conciliado com o cursinho, Ícaro já tinha passa-do no meio do ano em Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). “Assim, eu fiz a prova mais tranquilo”. Amiga de infância, Inês Costal, 24, lembra dele como aluno aplicado. “Sempre foi brilhante, era o CDF”, relata.

Orgulho

Ícaro atribui o desempenho à sua criação. “Ele nunca me deu trabalho, mas sempre cobrei. A média do colégio era 8, mas eu exigia 9”, lembra a mãe. O rigor deu resultado. “Tenho orgulho dos meus filhos”, afirma ela, incluindo a filha Ísis Carine dos Santos, 25, que mês que vem se forma em Engenharia Química, também na Ufba. Ontem, na formatura, dona Raimunda via o sonho realizado e vibrava num longo rosa. “Dever cumprido. Agora vou cuidar de mim”, diz ela, que este ano vai tentar cursar Pedagogia. “Espero conseguir uma vaga pelo Enem”, torce. Ícaro divide com ela e com Ísis uma casa na Liberdade. O pai, que mora em Feira de Santana, também veio para a formatura. Uma outra irmã mora em Conceição de Feira.

Desafios

O sonho de Medicina surgiu cedo. Ao ver crescer a barriga de três tias que engravidaram na mesma época, a cabeça do menino de 6 anos se encheu de perguntas. “Queria saber como tinha entrado, como saía”, lembra. Com o tempo, esqueceu a obstetrícia: agora quer ser oncologista. “Conviver com esses pacientes, tão carentes de atenção, me despertou para a área. O câncer é uma doença que isola”, reflete.

Se os pacientes sofrem, Ícaro também passou perrengues. Nos dois primeiros anos, além de cursar a faculdade, trabalhava e fazia curso técnico em Química, no Instituto Federal da Bahia (Ifba, então Cefet), que lhe possibilitou ser perito técnico da Polícia Civil.

O rapaz só chegava em casa às 23h e ainda tinha que estudar até as 2h. Várias vezes acabou dormindo em cima dos livros. “Mas nunca repeti nenhuma matéria”, orgulha-se. O grande impacto na Ufba foi o grau de dificuldade. “A cota facilita a entrada, mas sair de-pende de você”, analisa.

Hoje, Dr. Ícaro está encaminhado: passou em um concurso para médico do Programa Saúde da Família (PSF). E quer mais. “Quando vi a equipe do (Hospital) Sírio-Libanês que cuidou de Lula falando com os repórteres, pensei: um dia eu é que vou estar aí”.

Projeto propõe cotas obrigatórias

Mesmo com tantas universidades no país adotando cotas, não há uma lei federal que determine regras ou obrigue as instituições a aderirem ao sistema. As universidades têm autonomia para decidir quantas vagas destinarão às cotas e se o critério será socioeconômico ou étnico. Um Projeto de Lei (71/99) sobre o tema já foi aprovado na Câmara e desde 2008 aguarda para ser votado no Senado. Segundo a proposta, apresentada em 1999 pela então deputada federal Nice Lobão (PFL-MA), as universidades públicas federais reservariam vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, tenham renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo e sejam negros, pardos ou indígenas.

No Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Ricardo Lewandowski relata duas ações contra cotas para negros. A primeira foi ajuizada pelo DEM contra a Universidade Federal de Brasília (UnB), onde uma comissão decide por foto ou entrevista quem pode ser classificado como negro, pardo ou branco. A outra foi proposta em maio por um estudante que não foi aprovado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Há ainda no STF mais três ações sobre o sistema de cotas adotado pelo ProUni. Os processos estão na pauta de votação desse ano.

Fonte: revistaafricas.com.br