sábado, 24 de julho de 2010

Ali Kamel e a farsa de seu livro: “Não somos racistas”

Coloco este post de um texto muito bem elaborado por Mara Onijá. Ela analisa mais uma tentativa de descaracterizar o RACISMO dentro da sociedade brasileira... novas caras e os mesmos argumentos. É D + para todos nós.

Leiam....

Nesse artigo, tratamos de debater com algumas das principais idéias do livro “Não somos racistas – Uma reação aos que querem nos transformar em uma nação bicolor”, de Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, publicado em 2006. A idéia principal de Ali Kamel é de que o racismo não é um aspecto estrutural da sociedade brasileira. Para ele, o racismo existe aqui, mas porque “onde há homens reunidos há também todos os sentimentos, os piores inclusive”. Assim, ele resume o racismo daqui como um sentimento, uma questão moral, definição que está a serviço de esconder o racismo institucional e o papel que cumpriu e cumpre o Estado para sua manutenção.

“Aqui, após a Abolição, nunca houve barreiras institucionais a negros ou a qualquer outra etnia”

Para afirmar isso, ele tem que omitir como se deu o processo pós-Abolição. O projeto que o Estado brasileiro implementou esteve de acordo com seu objetivo de embranquecimento do país, colocando os negros como “incapazes” de compor a classe operária que então foi formando-se. A imigração européia foi promovida a passos largos: de 1890 a 1900, 1,4 milhão de imigrantes chegaram ao Brasil. Para os negros, que compuseram a força de trabalho escravo durante mais de 300 anos, a introdução do “trabalho livre” significou transformar-se em exército de reserva, sob as piores condições de vida. Ao contrário da definição de Ali Kamel, o racismo não se apresentou como mero “sentimento”, mas como política de Estado, planejada e implementada. Se isso não se caracteriza como barreira institucional, o que mais poderia assim se caracterizar?

Mas além de impedir os negros de ocupar os postos de trabalho que iam se gerando, o Estado tratou ainda de garantir a repressão e punição judicial aos negros com a Lei de Vadiagem, dois anos depois de abolida a escravidão. Negros que não comprovassem trabalhar, assim como a capoeiragem e os terreiros de candomblé, eram perseguidos violentamente. A lei considerava vadiagem: “Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meio de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a sua subsistência por meio de ocupação ofensiva da moral e dos bons costumes” [1]. Por um lado, milhões de negros que introduziram aqui técnicas desenvolvidas na África [2] e suportaram as condições de trabalho mais desumanas da escravidão não serviam mais para o trabalho [3]. Por outro lado, todos aqueles que não exerciam profissão eram considerados “vadios”. Depois de cumprir pena, que podia chegar a três anos em caso de reincidência, tinham ainda que assinar um termo comprometendo-se a “tomar ocupação dentro de quinze dias”. Ao mesmo tempo que te impedem de trabalhar, te obrigam a ter trabalho: assim poderíamos resumir esse mecanismo. Estavam na mira do desemprego e da repressão policial os negros recém “libertos”. Mas para Ali Kamel, nunca houve barreiras institucionais aos negros depois da abolição…

O racismo a serviço do capitalismo

Poderiam ser escritas muitas páginas sobre as “barreiras institucionais” que garantiram a manutenção do racismo ao longo desses 122 anos, após a Lei Áurea. As medidas de opressão ao povo negro não foram meros detalhes, mas parte essencial do projeto de formação do Brasil. Se hoje, os salários e direitos trabalhistas dos negros e negras são tão inferiores e ainda compomos em grande medida os índices de desemprego, tudo isso serve aos capitalistas para rebaixar a média salarial do conjunto da classe trabalhadora e aumentar seus lucros. A idéia de que negro é incapaz ou não se enquadra nos padrões de boa aparência se mantém muito a serviço desse interesse.

Como afirmou Malcolm X, “não existe capitalismo sem racismo”. E isso diz respeito não somente aos dias atuais, mas ao processo histórico em que se desenvolveu o capitalismo. O trabalho escravo do africano e do afro-descendente no continente americano – marcando-nos como “seres inferiores”, não-humanos - gerou riquezas exorbitantes às metrópoles. E mais ainda com o tráfico de africanos seqüestrados foram gerados lucros ainda maiores, dos quais se beneficiou principalmente a Inglaterra, justamente o país que a seguir esteve à frente no desenvolvimento da indústria capitalista – e que então empreendeu uma luta violenta contra o tráfico de africanos, pela expansão do trabalho livre [4].

Uma vez mais, a idéia de um Brasil mestiço para maquiar o racismo

Depois de tantas críticas a Gilberto Freyre e sua concepção de um Brasil mestiço e harmônico - feitas não somente pelo movimento negro, mas também por intelectuais brancos comprometidos em alguma medida com a luta pela igualdade racial -, Ali Kamel traz de volta as idéias de Freyre. Espertamente, apresenta-o como quem mais se destacou em se contrapor ao pensamento racista que predominava nas ciências sociais no início do século passado. É verdade quando Kamel caracteriza esse pensamento como “abjeto”. Mas há um problema: o pensamento racista de fins do século XIX e início do XX, que partia de caracterizar os negros como biologicamente inferiores para defender sua progressiva diminuição no contingente populacional, não foi eliminado nos dias atuais – apenas ganhou novas roupagens. De tempos em tempos, mesmo depois de todas as comprovações científicas sobre o quanto infundadas são essas teorias, aparecem cientistas reafirmando a existência de inferioridades biológicas. Pelo raciocínio de Ali Kamel, deveria se concluir que tudo isso não passa de exceção à regra.

Para Ali Kamel, é um absurdo que aqueles que se autodenominam “pardos” sejam considerados “negros”. Segundo ele, um “pardo” tem descendência de negros e também de brancos – o que é verdade. Mas é a descendência negra à mostra que predomina nas entrevistas de trabalho ou nas batidas policiais [5]: nessas horas, ninguém tem dúvida sobre quem é branco e quem é negro, o racismo mostra a sua cara sem máscaras e a “nação bicolor” se revela uma vez mais.

Mas Ali Kamel está preocupado em encontrar o “cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho, moreno, marrom-bombom”. Ele se assusta com o que para ele só pode ser uma idéia – equivocada – e não uma realidade: “uma nação de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros”. E continua: “Outro susto: aquele não era o meu país”.

Seu país é bem diferente dos Estados Unidos, pois aqui “quase todos, mesmo os racistas, encantam-se com o que se considera ter vindo da África”. Ora, os negros viemos da África e encantamento por nosso povo é o que não conhecemos desde os tempos da escravidão. Ah, mas ele está falando da cultura negra, podem dizer. E o que muda? A burguesia branca pode mesmo se encantar com o carnaval do Rio de Janeiro ou da Bahia [6]. Mas, além de isso ter como pano de fundo o turismo sexual, em que as mulheres negras seguem como “mulatas” de consumo, essa aparente “confraternização” não muda em nada as relações sociais que marcam o racismo estrutural.

Mas Ali Kamel é um “freyreano” convicto. Chega ao ponto de dizer que Gilberto Freyre deu ao negro a “sua real dimensão”, e exalta a “mistura” insistentemente. Ele acusa os críticos de terem lido apressadamente ou não terem lido a obra de Gilberto Freyre. Faz isso para não ter que explicar a contradição entre a caracterização de “congraçamento” – ou seja, amizade, fraternidade – e os estupros, olhos furados, peitos dilacerados relatados pelo próprio Freyre.

A solução de Ali Kamel só pode ser uma farsa

Ali Kamel não ignora os números das pesquisas que revelam as desigualdades raciais: ele as manipula tentando provar por um lado que a “pobreza é parda” – e não negra – e que os negros – nesse caso, “pardos” e “pretos” - aparecem relacionados aos níveis mais baixos de condições de vida, pelo mero fato de ser grande parte da população pobre. Logo, para ele, as políticas específicas para os negros são infundadas.

É aí que entra no que diz ser “a face mais feia da sociedade brasileira”: “o preconceito contra os pobres”, que ele espera diminuir com a diminuição da pobreza! E então, vem a “única solução”: a educação. A “fórmula mágica” é investir na educação e assim o país se desenvolverá e ajudará os pobres a deixar de ser pobres (ou tão pobres). Esse é o mundo de Kamel: o racismo não é estrutural no Brasil e pobreza não tem nada a ver com exploração capitalista! Na sociedade que ele desenha, não existem capitalistas mantendo seus lucros exorbitantes sob o sangue e o suor dos trabalhadores e nem a manutenção de um exército de reserva que vive na miséria. O problema é uma tal concentração de renda abstrata, que não se explica como se desenvolve – só o que ele pode dizer é que investir na educação será a solução. Não é à toa que Yvonne Maggie [7] afirma que o que está em pauta é o “nosso futuro”. Está em pauta o futuro deles e o nosso, que não pode ser o mesmo, porque a “nação” que apresentam, não garante direitos iguais: na verdade, garante muitos lucros a quem possui a propriedade privada, ao mesmo tempo em que garante exploração e repressão aos que nada têm, a não ser a sua força de trabalho. E o problema da “nação bicolor” não está colocado somente para que se contraponham às políticas de cotas raciais. Também nesse caso, está em pauta o futuro: se os negros desse país tomam em suas mãos a luta contra a opressão histórica a que estamos submetidos isso significará colocar em risco as bases da dominação dessa burguesia branca. É por isso que lutamos. É contra isso que se coloca Ali Kamel.
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[1] Artigo 399 do Código Penal de 1890.
[2] Ao contrário das idéias que se propagam até hoje, muitos grupos africanos desenvolveram antes da chegada do homem europeu técnicas de agricultura, mineração e metalurgia, sistemas matemáticos, conhecimentos de astronomia e medicina, etc.
[3] Celso Furtado, em Formação Econômica do Brasil, livro escrito em 1959, afirma que “Sendo o trabalho para o escravo uma maldição e o ócio o bem inalcançável, a elevação do seu salário acima de suas necessidades – que estão definidas pelo nível de subsistência de um escravo – determina de imediato uma forte preferência pelo ócio”.
[4] É importante ressaltar que não havia nenhum interesse humanitário combinado a esse interesse econômico. O combate ao tráfico de africanos, desde meados do século XIX implementado pela Inglaterra como uma forma de acabar gradualmente com o trabalho escravo no continente americano, significava perseguir, bombardear e naufragar navios cheios de africanos.
[5] Aquele considerado “mestiço” ou “pardo” pode até conseguir uma vaga de emprego se estiver concorrendo com alguém considerado “preto”, mas se tiver um branco à disposição, vão embora o “mestiço” e o “preto”, sentindo na pele o que é ser negro nessa sociedade, ainda que varie a melanina.
[6] O que não quer dizer que a História da África e todo conhecimento produzido nesse continente sejam valorizados: persiste a idéia de uma África de safáris, fome, Aids e nada mais.
[7] Professora de Antropologia da UFRJ, uma das organizadoras da carta pública contra as cotas, intitulada “Todos têm direitos iguais na República Democrática”.

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